Páginas

quarta-feira, 23 de março de 2011

Família feliz.




Naquela sala, há muito tempo só havia os escombros de uma família. Havia ainda pessoas mortas, ainda que vivas e respirando. Não se olhavam e nem sentiam mais nada uns pelos outros.Ali existia apenas a mentira misturando-se com a dor a todo tempo.Existia também Henrique, filho do meio do casal, resto de um casamento de ilusões e de muitos tapas na cara, costurando a linha do destino através das bebedeiras do pai, e da apatia da mãe em ver e deixar toda a situação acontecer.Os outros irmãos velavam o corpo do pai morto, como se tivesse sido o melhor pai do mundo; enquanto Henrique, só conseguia se lembrar através dos seus olhos de criança o que sentiu quando tomou o primeiro tapa na cara de seu pai.
Aquela família só existia mesmo no porta-retrato. Não conseguia sentir um pingo de pena em ver o corpo do pai dentro de um caixão, a mãe estava um poço de lamentos e lágrimas. Os irmãos no fundo tinham um misto de pena, raiva e ressentimento. Ele só conseguia sentir alívio de não ter que olhar para o pai cego nunca mais. De não ter que imaginar em que direção seus olhos de bêbado queria alcançar.Alívio, era a única e sucinta palavra que seu cérebro conseguia determinar o significado. Era o único sentimento que nutria em relação ao pai no caixão.
Pela janela, que a mãe acabara de fechar por causa do vento, todos conseguiam ver a chuva caindo e ouvir a voz gritante de uma tia do interior cortando o silêncio histérico que fazia na sala, dizia: "- Deve estar levando muitas saudades!". "- Deve sim!" Pensava Henrique. Saudade da casa que quebrara inúmeras vezes, do olho roxo que fizera em seu irmão menor, da surra que dava em sua mãe até o nariz sangrar... Devia estar levando muitas saudades sim.Saudade da tortura imposta a três crianças, que agora estavam libertas de seus fantasmas do passado.Só não conseguia entender o desespero da mãe.O porquê de tanto sofrimento.
Com os olhos vermelhos, os irmãos por parte de pai chegaram. Depois de mais de dez anos sem ver o pai, fizeram uma entrada triunfal. A irmã que deu o golpe no pastor da igreja universal, casando-se apenas por dinheiro, chegara agarrada aos filhos como uma boa samaritana, a outra que desfez o casamento do chefe e ainda casou-se com ele, tirara da bolsa um óculos escuros e deu um beijo na testa do cadáver, o irmão mais velho sacudiu a cabeça e pensou o mesmo que Henrique: " - O que estamos fazendo aqui?"
O que de mais engraçado existia ali era a figura da mãe. Tão melancólica que chegava a ser uma cena patética. Na hora de fechar o caixão se debruçou contra o corpo e gritava como uma cadela no cio. Devia estar sentido falta das porradas e das fraldas sujas de coco e mijo que tinha que trocar todos os dias de manhã logo depois que o pai teve glaucoma, diabetes, pneumonia, entre outras.Engolia antes mesmo do café.Devia sentir falta do papel de coitadinha e de protagonista de uma novela que nunca teve final feliz.Henrique olhava a cena aterrorizado, ao mesmo tempo em que na sua mente via as imagens de sua mãe sendo levada pro hospital, com sangue por todo o corpo, o nariz quebrado e desacordada.
Quando o caixão estava sendo enterrado, as pétalas sendo jogadas pelas pessoas mortas e vivas pensou ser o último capítulo daquela novela sem final feliz, onde tinha sido revelado o segredo do quem matou (nesse caso ele mesmo) e só lhe restava agora a cela fria, escura e novamente a solidão. Ao matar o pai, Henrique matou seu algoz, queria por fim definir sua personalidade.Vendo-lhe a vida escapar por entre os dedos.Faltava exterminar sua deficiência de viver entre as paredes do passado.Faltava-lhe alguém que apontasse o lado engraçado do drama humano.
Lá fora ainda ventava e chovia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário